segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Uma descrição de Torres Vedras em 1906 (1)


Gabriel Pereira, intelectual de mérito na transição do século XIX para o século XX, tradutor de clássicos gregos e latinos e director da Biblioteca Nacional entre 1888 e 1902, dedicou os últimos anos da sua vida a descobrir o património da região à volta de Lisboa.
Desta sua curiosidade nasceu uma obra, editada em 1910, intitulada “Pelos subúrbios e visinhanças de Lisboa”, onde dedicou um capítulo a Torres Vedras (“Torres Vedras – Notas d’arte e arqueologia”(2)).
Este capítulo foi escrito em 1906 e, segundo se percebe pela sua leitura, teve por base várias visitas aqui efectuadas em 1904 e 1905, ao que parece para fazer tratamento termal nos Cucos.
O mérito dessa obra reside no facto de a sua descrição se basear na observação directa e não na mera readaptação da obra de referência de Madeira Torres, como aconteceu com outros autores desse período.
Ao longo de vários sub-capítulos vai descrevendo os motivos de interesse que encontrou no património local, destacando-se a sua descrição de usos e costumes da época.
Nessa obra foram abordados vários temas:
- “Painéis antigos em Torres Vedras”, sobre as pinturas antigas que encontrou nas Igrejas da vila e no Varatojo;
- “O Túmulo dos Perestrellos”, existente na Igreja de S. Pedro;
- “Capiteis românicos”, da Igreja de Stª Maria do Castelo;
-“Ermida e forte de S. Vicente”, falando das Linhas de Torres e registando as “vistas variadas da villa”, a partir desse lugar, “que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjunto de paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicados de casaes”;
-“Imagens dos Santo”, descrevendo algumas que encontrou em Igrejas da vila e no Varatojo;
- “Uma cadeira do século XV”, sobre a célebre cadeira atribuída ao uso de D. Afonso V quando estava no Convento do Varatojo, então ainda neste lugar, hoje no Museu de Arte Antiga em Lisboa;
-“Brasões da Villa”, descrevendo os três que encontrou na Câmara, no Chafariz dos Canos e na Fonte Nova;
- “Archivos – Camara, Misericordia , Egreja de Santa Maria”, um dos capítulos mais interessantes, pois permite redescobrir alguns documentos ainda hoje pouco conhecidos da maior parte do público, a maior parte, felizmente, actualmente preservados, quer no novo espaço do Arquivo Municipal, quer no Arquivo da Misericórdia;
- “No Varatojo”, onde faz um levantamento de inscrições e pinturas então aí existentes, um “bello sitio para dulcificar maguas e sossegar corações atribullados”;
- “Uma inscrição moderna”, relativa ao túmulo de Luís Mouzinho de Albuquerque na Igreja de S. Pedro;
- “Sinos”, os de S.Pedro;
- “Quinta das Lapas”, onde o autor faz uma pormenorizada descrição da paisagem ao longo do caminho que liga a vila àquela Quinta, “por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas”, antes de descrever a Quinta, a sua arquitectura e o seu jardim, num dos capítulos mais desenvolvidos;
- “A caminho dos Cucos”, elogiando as qualidades das suas àguas, nomeadamente as de mesa que o autor refere como “não bebendo outra” durante a sua estadia;
- “Casa dos Clérigos pobres”, então estruturalmente separada da Igreja de S. Pedro, destacando os seus azulejos e o seu tecto pintado com as figuras dos quatro evangelistas;
- “O Asylo da Conquinha” (actual Lar de S. José), então de inauguração recente,  distante, “vinte minutos de agradável passeio a pé” da  vila, seguindo-se “a estrada da Varzea” através de uma “amplo valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos” e “bello vinhedos”;
- “Ruços, além”, descrevendo o famoso “conselho de Ceuta” de 1414;
Para o fim, aqueles se são os mais pitorescos capítulos, e interessantes do ponto de vista documental, com descrições saborosas da vida e da paisagem local :
- “Passeio a Santa Cruz de Ribamar”, a descrição que o autor fez de uma viagem “em commodo trem” até àquela praia, no dia 27 de Setembro de 1905, já por nós usada em crónica anterior, passando por “campos animados”  e “estradas concorridas”, uma “festa”, “a grande festa das vindimas” e onde se encontra uma referência a um “grande rochedo alteroso” que se “destaca na praia” o Penedo do Guincho, que o autor refere como tendo sido “acessível em tempo, porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na rocha” (?);
- “Na missa e no mercado”, com uma curiosa descrição da missa à qual o autor assistiu na Igreja de S. Pedro, num domingo, 14 de Agosto de 1904. Parado à porta da Igreja o autor anotou “o desfilar dos devotos. Primeiro os homens dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale, lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa (…) Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparável”. Na mesma ocasião realizava-se o mercado, no “terreiro próximo da egreja”, onde se vendiam,  “melões, melancias, uvas lindas, brunhos vários, maçãs grandes, variedade de peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça”. Atrás da Igreja ficava o mercado do peixe, onde se vendiam “sardinhas e sarda, fresca e salgada, cação, gorazes”. Num “cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão, caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de abobora. Dois homens vendiam planta de couve. Vi ainda vendedores de enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura”, notando o autor que “o povo d’estes sítios é calçado”. Nesse Domingo era grande a “freguesia” pelas lojas da vila, próximas da Igreja”, registando o autor a existência de uma “industria de ferragens e mobilia especial, com muito geito”.
Por último, o autor regista “A feira franca” que se realizou em 21 de Agosto de 1904, na varzea, onde, na “parte arborizada enfileiram-se barracas e tendas” e, “no rocio nú é  feira de gados e a corredoura”, barracas de ourivesaria, de utensílios de “arame, cobre, ferro entanhado, latoaria”, de vidro, “perto do grande estendal de louças brancas e vermelhas”, notando-se ainda a presença de “um especialista de buzinas de moinhos de vento”. Vende-se ainda “calçado grosso, bastante correaria”, pequenas “quinquilherias”,vendas de madeira,  material “vinário”, carros para bois. Podem ainda ver-se “modestas roletas” e ,”leiloeiros de várias qualidades”, chamando “a gritos a atenção do povinho, perto das barracas de tiro ao alvo”. Já a feira de gado pareceu ao autor menos importante, parecendo-lhe “em geral mal tratado”, mais “ a pancada que a alimentação regular”.
Enfim, este é uma das obras mais interessantes, não tanto pela informação histórica, mas pelo retrato pitoresco de uma época.
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(1) - PEREIRA, Gabriel, Pelos Suburbios e vizinhanças de Lisboa, Lisboa, 1910, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira e Cª, 1910 (texto publicado na secção "Vedrografias" do Jornal "Badaladas" de 23 de Setembro de 2016);
(2) – PP.253 a 305.

2 comentários:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Mais uma bela achega para a nossa História local.
Venerando: preciso URGENTEMENTE de ver esse livro. Tem-lo na tua posse?
Obrigado

leandro guedes disse...

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